quinta-feira, 22 de abril de 2010

O estado a que chegámos...

por Sandra Monteiro (in Le Monde Diplomatique)

«Não foi para isto que se fez o 25 de Abril», afirmou recentemente o ministro da Justiça, Alberto Martins, a propósito das fugas de informação que violam o segredo de justiça [1] . Mas a frase repete-se por aí, dos desabafos entre estranhos nos transportes colectivos às conversas mais ou menos privadas que unem as pessoas para quem a mais forte memória, vivida ou transmitida, de um tempo em que como comunidade nos empenhámos na construção de um futuro de liberdade e justiça social foi, justamente, o 25 de Abril.

O sufoco que se instalou na vida de todos os dias e o aparente bloqueio de qualquer alternativa que possa visar o bem-estar colectivo contrapõe-se hoje à sensação, naquele período experimentada, de abertura de um campo de possibilidades e de expectativas em relação a um futuro que só se imaginava melhor.

Numa primeira fase da crise, parece que estivemos concentrados nas suas dimensões mais sectoriais (justiça, bancos, emprego, educação, saúde, etc.), mas à medida que o tempo vai passando vamos ligando as pontas dos fios que unem os sectores e torna-se patente que existe um problema de fundo, estrutural.

O resultado é que, em 2010, vamos comemorar o Dia da Liberdade em más condições socioeconómicas para nos constituirmos como sujeitos livres. Vamos comemorar o Dia do Trabalhador como desempregados, precários ou trabalhadores em perigo constante de perda de direitos. Vamos comemorar o Centenário da República num quadro de erosão dos valores republicanos que deviam estar associados ao conceito e ao cuidado da «coisa pública». Vamos comemorar o Ano Internacional da Biodiversidade sem verdadeiras medidas globais para assegurar a sustentabilidade ambiental dos ecossistemas.

E vamos comemorar o Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social numa Europa que se recusa a olhar para as conexões sistémicas entre as vantagens do seu centro e o desastre das suas periferias [2] e que, em vez disso, procura impor aos governos dos países em dificuldades, com a ajuda de agências de notação, a adopção de programas de austeridade assimétricos e socialmente injustos. Programas que protegem o capital financeiro e os sectores mais responsáveis pela actual crise e, numa ironia macabra, diminuem ou retiram até, justamente aos pobres e excluídos, os mecanismos que ainda subsistem de protecção social.

O caso de Portugal é, a este título, paradigmático. No país com maior desigualdade de rendimentos da União Europeia e com níveis assombrosos de pobreza, e até de pobreza laboral, o Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) optou por combater o défice reduzindo cegamente os apoios sociais. O sociólogo Pedro Adão e Silva já classificou essa solução como «ideologicamente errada e politicamente preguiçosa», clarificando a escolha de fundo que estava em causa na elaboração do documento: «garantir a sustentabilidade de direitos ou, tomando o PEC à letra, fazer regressar a rede de mínimos sociais à lógica discricionária do passado» [3]. O economista José Reis, por seu lado, afirma que «o PEC português tem opções controversas, orientações desequilibradas e consequências injustas e assimétricas», motivo mais do que suficiente para se intensificar o debate sobre as medidas que prevê (ver artigo nesta edição).

A «solução preguiçosa» é, de facto, preocupante. Porque não se trata de uma «preguiça» indolente, que possamos associar a inacção, mas antes de uma preguiça activa, que faz lembrar a semântica bíblica que a considera um pecado capital (como oposição directa ao amor a Deus). No contexto do PEC, e face a um desemprego galopante, essa «preguiça» sinaliza mesmo uma falha, senão mortal, decerto moral: é uma má escolha e reifica uma oposição directa ao contrato social em que as democracias fundaram a legitimidade da representação popular e para cujo funcionamento criaram as instituições democráticas que conhecemos.

Não é só uma cedência ao facilitismo; é a proposta (que alguns saudaram como «corajosa») de que se quebre o consenso em torno do Estado social e da finalidade, partilhada pela comunidade política em que nos revemos, de gerar bem-estar para todos, de forma digna, inclusiva e sustentável. Mas a gravidade deste programa − que na verdade não foi directamente sufragado e está até em contradição com o que venceu as eleições − só pode ser apreendida se juntarmos, às medidas que reconfiguram direitos e prestações sociais, as que enveredam por uma plano de privatizações que, a médio prazo, privam os poderes públicos de meios indispensáveis para, justamente, poderem sustentar a provisão de serviços públicos e prestações sociais.

A tragédia é conhecida, pois a receita liberal há muito que vem sendo experimentada: as contas públicas acabam por perder as fontes de receitas das empresas que eram lucrativas; o Estado assume parte dos riscos que os privados se recusam a incorporar; a gestão privada contraria qualquer ilusão que pudesse existir de maior eficiência ou qualidade e, em troca, os cidadãos vêem-se confrontados com serviços mais caros e, frequentemente, de pior qualidade; por fim, fora de qualquer lógica de inclusão social e coesão territorial, que só as políticas públicas podem garantir, são progressivamente eliminados da actividade privada os segmentos não lucrativos que o orçamento de Estado não cubra.

O estado a que chegámos é, de facto, uma encruzilhada. Convoca a comunidade política que somos a regressar à discussão das finalidades que nos unem e a fazer a escolha, que não é nova, entre lógicas públicas de defesa de interesses comuns, que se apropriem do Estado, mas sem o considerarem a única esfera da organização e da participação dos cidadãos, e lógicas de interesses privados, que nos atomizam cada vez mais em estratégias individuais de competição, e em resultado das quais os que se saem sempre bem são os que já partiram com múltiplas vantagens para a contenda (mesmo que as narrativas se apressem a glorificar a excepção, o self-made man).

Os portugueses que foram obrigados pela crise a cancelar seguros de saúde, por exemplo, e que agora lêem nos jornais as desvantagens dos novos produtos alternativos que o mercado lhes propõe («cartões de desconto»), não devem estar longe de se juntar, entre outros, aos desiludidos dos fundos de pensões, ou aos trabalhadores precários atirados para o desemprego, numa mais clara compreensão da importância de defender a sustentabilidade dos serviços públicos e das prestações sociais. Raras vezes chegamos a encruzilhadas tão decisivas… A que estado queremos chegar?

sexta-feira 9 de Abril de 2010

Notas
[1] «O Estado de Direito não é isto», Expresso, 2 de Abril de 2010.

[2] Ver Costas Lapavitsas, Nuno Teles e Eugénia Pires, «O euro e a política da estagnação: uma tragédia que não é só grega», Público, 28 de Março de 2010.

[3] «A solução preguiçosa», Diário Económico, 23 de Março de 2010.

Sem comentários:

Enviar um comentário